Vamos começar agora a conceituar e oferecer ferramentas teóricas para o seu olhar. Na sessão anterior, fizemos análises de propagandas, imagens e situações sociais facilitando que você percebesse como existe cotidianamente uma “educação generificada”. Foi possível perceber como somos bombardeados, em todo momento, por mensagens que alimentam estereótipos sobre o masculino e o feminino, reafirmando preconceitos e desigualdades. Nessa seção, vamos apresentar algumas discussões que acontecem entre os estudiosos e estudiosas das relações de gênero.
Inicialmente vamos fazer uma distinção entre sexo e gênero. Quando uma pessoa grávida faz o ultrassom e o médico fala “É uma menina”, em que ele está se baseando? Ele está se baseando em uma característica biológica que é possível perceber no exame. Essa característica biológica é o sexo. A família dessa criança vai pra casa e começa a comprar o enxoval com as cores rosa, lilás e por aí adiante. Nesse momento, em que se associam cores e padrões ao sexo biologicamente dado, estamos falando de uma questão cultural e social, ou seja, de relações de gênero. Pode-se dizer, de maneira simplificada, que o sexo é biológico e o gênero é cultural e social, tratando-se, portanto, de duas coisas distintas e não apenas de uma só, porém intimamente interligadas.
No exercício aqui proposto de olhar para os lados e olhar novamente buscando generificar o que se vê, você deve ter percebido que há diferentes padrões associados a ser homem e a ser mulher.
E você deve ainda ter percebido que esses padrões culturais estão hierarquizados em uma escala em que se linearizam características masculinas e femininas em que um é o espelho negativado do outro.
Como o esquema abaixo:
Ao construir esse espelho de opostos das características de homens e mulheres, se cria uma polaridade em que o prestígio e o poder são associados ao masculino. Isso é o sexismo. O sexismo se baseia no binarismo de gênero, a partir do qual se estabelecem dois polos nos quais se hierarquizam características opostas: atribuindo-se poder e prestígio a um dos polos, enquanto ao outro polo se confere características tradicionalmente desvalorizadas.
O sexismo é justamente essa hierarquia entre valores, comportamentos e papéis, associados ao ser homem e ao ser mulher. É o sexismo que naturaliza o fato de que homens possam ser astronautas, caminhoneiros ou pedreiros, e mulheres devam ser professoras, domésticas ou babás. É o sexismo que justifica que mulheres ganhem menos do que os homens, mesmo que exerçam a mesma atividade e tenham a mesma formação e preparo no exercício da mesma função.
Assim, espera-se que mulheres dóceis e maternas sirvam a homens viris e arrojados: esposas aos seus maridos, filhas aos seus pais, namoradas aos seus namorados, empregadas aos seus patrões. Você já deve ter observado, por exemplo, que, em lugares em que há muitas mulheres trabalhando, é comum que o supervisor ou o gerente seja um homem.
Claro que muita coisa já mudou graças à luta de muitas mulheres que se engajaram nos movimentos sociais, especialmente o movimento feminista. Entretanto, ainda há muito a ser feito. Se vocês observarem a relação entre seus jovens alunos e alunas, vão perceber o sexismo aparecendo e vão observar como o binarismo de gênero é perpetuado.
E ainda temos mais um elemento para colocar em nosso caldeirão: a sexualidade! Costumamos esperar que uma menina ensinada a ser dócil só se apaixone por meninos.
Há, na nossa cultura, uma expectativa de que aconteça uma correspondência entre sexo-gênero-desejo. Entretanto, isso não acontece de forma tão linear. Existem várias pessoas que se posicionam de outras formas nessa linha que liga o sexo ao gênero e ao desejo.
Por exemplo, vejamos a história da médica Christine McGinn.
Ela é cirurgiã plástica especialista em cirurgia de mudança de sexo. Até aí a sua história é como de outras médicas, mas ela é uma mulher transexual. Ela nasceu com genitais e características sexuais masculinos: foi escoteiro e fuzileiro dos EUA, tendo lutado na guerra do Iraque.
Em 2000, ela faz sua cirurgia. Conhece uma outra mulher, Lisa, e as duas constituem uma família.
Como Christine havia congelado seu esperma, Lisa foi inseminada artificialmente e gerou um casal de gêmeos de nome Eden e Lucas.
Essa história nos aponta várias coisas. Inicialmente, é preciso refletir que o sexo biológico de uma pessoa não necessariamente vai definir como ela vai se posicionar socialmente em relação ao gênero (a esse posicionamento, chamamos de identidade de gênero). A expectativa social é que quem tem pênis deva se reconhecer como homem e direcione seus afetos para uma mulher. Porém, a história nos mostra que as pessoas se reconhecem de maneiras distintas. Você conhece pessoas que não seguem a linearidade entre sexo, gênero e desejo? Com certeza sim. Na vida real, nas pessoas reais, vemos que as possibilidades são super variadas!
Mas a história de McGinn ainda nos oferece mais coisas para pensar. Ela fez uma cirurgia de mudança de sexo. Com isso, alterou seu corpo biológico e sua definição de sexo. Passou a ser uma mulher, uma mulher transexual. E, uma mulher que gosta de outra mulher, com uma orientação do desejo sexual homossexual. Nosso desejo sexual e nossos afetos podem ser mobilizados por pessoas de outro sexo, do mesmo sexo ou dos dois sexos. Dependendo de como nosso desejo se mobiliza, dizemos que somos heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. A sociedade costuma legitimar apenas as relações heterossexuais, porém, cada vez mais tem sido possível enxergar outras possibilidades no campo da sexualidade com menos preconceito.
Existe uma norma construída culturalmente e existem diferentes experiências vividas pelas pessoas em relação a essa norma. Nem todo mundo cabe na norma. O que fazer com essas pessoas? Lidar com quem é “fora da norma” sempre foi uma questão para a nossa sociedade. Criamos sempre um sistema de vigilância para assegurar que todo mundo “entre na norma”. Em relação à sexualidade, esse sistema é a heteronormatividade.
A heteronormatividade é um sistema de vigilância social em que homens e mulheres são interpelados a demonstrar apenas comportamentos coerentes com seu sexo biológico e com o desejo heterossexual.
A heteronormatividade se expressa em situações cotidianas e aparentemente despercebidas. Falas, como “anda direito, firma esse corpo, está parecendo mulher”, direcionadas a um menino são exemplos da heteronormatividade. Estamos o tempo todo vigiando as subjetividades e comportamentos para assegurar uma heterossexualidade. Quando uma pessoa foge da norma heterossexual, ela pode ser vítima de agressões ou violência, ou seja, de homofobia.
A homofobia é a atuação preconceituosa e discriminatória com pessoas que fogem da norma heterossexual e/ou que a identidade de gênero não é coerente com seu sexo biológico. Assim, quando uma pessoa é agredida pelo fato de parecer ou ser gay, dizemos que foi vítima de homofobia. O enfrentamento da homofobia nos ambientes escolares precisa ser fortalecido, assim como o questionamento da heteronormatividade. É preciso ensinar e aprender que existem diferentes formas de expressão da sexualidade e que todas podem ser legítimas.
Vejam só o caso da Christine McGinn: ela contraria as normas de gênero ao se indispor contra a heteronormatividade e ela o faz em vários momentos de sua vida. Quando faz a cirurgia, quando se apaixona por outra mulher e constitui uma família com ela, quando elas resolvem ter um filho, quando fazem inseminação artificial com o seu esperma anteriormente coletado. Como podemos nomear Christine? Ela pode ser definida como uma mulher transexual lésbica. Nesse sentido, ela não cabe no binarismo de gênero formatado pelo heterossexismo que prescreve que se é homem ou mulher, heterossexual ou homossexual, masculino ou feminino. É o binarismo de gênero que define se estamos do lado de cá ou do outro lado a partir do sexo meramente biológico de cada um, visto que se tem pênis ou vagina.