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Estereótipos raciais e a invisibilização de identidades

Contudo, se raças não existem do ponto de vista genético, por que nos referimos, nas relações cotidianas e no presente texto, às relações “raciais”? Porque ainda que o conceito de raças não tenha pertinência biológica alguma, ele continua a ser utilizado, enquanto uma construção social e cultural, como um instrumento de exclusão e opressão. No Brasil, os traços fenotípicos (a pigmentação da pele, sobretudo) são utilizados como um importante elemento de avaliação social dos indivíduos e, geralmente, se transformam na principal fonte de preconceito.

Assim, mesmo a Genética tendo atestado que somos todos humanos e que raças biológicas não existem, algumas pessoas e alguns grupos, identificados como pertencentes a uma determinada “raça inferior”, continuam a ser vítimas de discriminação e de exclusão em razão de seu pertencimento racial.

 
  Charge

No dia 20 de Março de 2011, o Jornal Paraná Online publicou uma charge com um desenho de um macaco e seguintes dizeres: “Almoço para Obama terá baião de dois, picanha, sorvete de graviola…E BANANA, MUITA BANANA”. A charge foi publicada em alusão à primeira visita do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama, ao Brasil. De acordo com a escritora Heloisa Pires de Lima (2008), um dos principais ataques às pessoas negras é o apelido de macaco(a). No caso de crianças em idade escolar, o uso desses apelidos, geralmente, detona inúmeras brigas que podem terminar em expulsão ou em marginalizações no interior do ambiente escolar.

 
 

Esse tipo de tratamento discriminatório, que hierarquiza as diferenças e define que determinados grupos não são totalmente humanos, é herdeiro indireto do pensamento vigente no final do século XIX e no início do século XX no Brasil. De acordo com o pensamento daquela época, os modos de pensar, viver e se comportar de índios, negros e mulatos eram resultados de suas características genéticas (= raciais) e suas supostas indolência, inaptidão para o trabalho e inferioridade intelectual, seriam provas dessa (suposta) inferioridade. Para superar o atraso que esses povos representavam para o Brasil, seria preciso diminuir a presença deles no conjunto da sociedade brasileira. A exemplo do ditado popular muito utilizado em algumas regiões brasileiras, seria preciso “apurar a raça”.

 
  Pintura "A Redenção de Cam"

A tela faz alusão às pinturas da sagrada família, com elementos mundanos, típicas do barroco espanhol. Ao centro a mãe com seu filho no colo, com olhar e gestual que remetem às representações sacras de Nossa Senhora com o Menino Jesus (significativos os elementos que fazem alusão aos trópicos, como as folhas de Palmeira sobre a avó e a laranja na mão da criança). Neste caso, a mãe é uma negra e a criança tem a pele mais clara. O pai, branco, descansa ao lado com olhar prasenteiro, expressão de satisfação. A avó materna, de pele mais escura que a mãe, levanta as mãos para o céu, agradecendo o embranquecimento do tom de pele de geração em geração.

Veja a pintura em alta resolução AQUI

 
 

Hoje em dia, é difícil encontrar alguém que, de modo aberto, defenda ideias racistas. No entanto, parte daquele imaginário ainda persiste entre nós e, de maneiras muito diferenciadas, influencia as relações raciais brasileiras. Afirmar que o racismo no Brasil se expressa por meio de um “racismo institucionalizado” não significa dizer que o processo discriminatório tenha sido adotado de forma legal ou oficial pelo Estado Brasileiro, mas significa dizer que as práticas de hierarquização a partir da crença na existência de raças superiores e inferiores (intelectual, cultural e socialmente) foram enquanto prática social e são cotidianamente atualizadas. E é exatamente a perpetuação desses imaginários sobre a suposta inferioridade da “raça” negra que tem contribuído para a produção e reprodução das desigualdades e discriminações, seja por meio da inferiorização da população negra, seja por meio da invisibilização dos fatos históricos, econômicos, culturais e políticos da sociedade brasileira.

Os dois depoimentos apresentados a seguir evidenciam não apenas alguns dos modos pelos quais a inferiorização da população negra se dá, mas também alguns dos impactos que esse tipo de discriminação causa nas pessoas negras.

"Sofro bullying na escola por ser negra". Sou negra e, por isso, sofro bullying na escola: a maioria dos meus colegas é branca! Meninos de todas as séries me chamam de apelidos horríveis e ficam gritando xingamentos racistas para mim no recreio. Uma vez, até me bateram. Eu fico quieta porque tenho medo de responder e eles continuarem falando besteira. Quando isso acontece, fico muito triste e, às vezes, até choro. É sempre o mesmo grupo de meninos e meninas que faz isso comigo. Tenho certeza de que eles fazem isso só para me deixar com raiva. O que mais pesa é que acho que essas pessoas só olham a aparência. Elas não se preocupam em saber como eu sou, se tenho sentimentos, se vou sofrer... Para eles, nada disso importa! O que eu posso fazer?"
A.C., 15 anos. FONTE

"Minha avó paterna, Mariana, foi uma pessoa muito importante na minha vida. (...) Ela era filha de escravos. (...) Quando fiz sete anos e comecei a freqüentar a escola, teve um episódio que marcou bastante a minha vida. (...) No primeiro dia em que fui para a escola, eu recebi um caderno, um lápis e, estranhamente, a minha avó colocou na bolsa um pedaço de madeira (...) e falou: ‘agora vocês vão para a escola. Vão passar por momentos muito difíceis. Quando alguém chamar vocês de neguinho, você pegue esse pau e desce o sarrafo’."
Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Depoimento Histórias do Movimento Negro no Brasil, 2007.

Nesses depoimentos, chama nossa atenção a recorrência e a naturalidade com a qual apelidos pejorativos em relação a negros e negras são utilizados, sobretudo no interior das instituições escolares. No módulo 4, eixo 4,  “Juventude, Indisciplina e Regras Escolares”, os autores Paulo Nogueira e Sara Villas discutem a recorrência de apelidos pejorativos na sociabilidade de jovens em idade escolar e como essas situações, muitas vezes, são nomeadas como bullying no espaço escolar. Mostram, no entanto, que, nos últimos anos, o termo passou a ser utilizado para designar atitudes tão diferenciadas, que seu significado acabou sendo relativamente banalizado. “Ao tratar tudo como farinha do mesmo saco, acabamos minimizando o que realmente deveria ser combatido, que são as desigualdades e hierarquias sociais praticadas na forma de racismo, homofobia e sexismo, por exemplo”.

O uso de imagens negativas associadas à identidade negra, como é o caso dos apelidos pejorativos, bem como a omissão de referências positivos relativas a tal identidade, como é o caso da invisibilização, pode causar danos graves à auto-imagem e à auto-estima das crianças e jovens negros(as).

Charge

Apesar de aparentemente sutil, a invisibilização pode gerar feridas tão profundas quanto a discriminação aberta, pois a ausência de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado de determinadas identidades também pode acarretar traumas profundos nos indivíduos estigmatizados. Nesse sentido, o invisível não é aquilo que não existe, mas aquilo que foi ativamente construído como inexistente. Por exemplo, na medida em que os currículos escolares não fazem referências ao papel ativo que negros(as) escravizados(as) tiveram no processo de contestação do sistema escravista no Brasil, eles contribuem para reforçar  a imagem de passividade associada a negros e negras que foram transformados(as) em escravos(as) no país.

Esse processo de estereotipização e de invisibilização, no entanto, não se aplica exclusivamente à população negra no Brasil. Com exceção do dia 19 de Abril, “dia do índio”; em quantos outros dias a identidade e a cultura indígena estão presentes no cotidiano escolar? Nos veículos de comunicação, por exemplo, as imagens transmitidas sobre os povos indígenas, que em geral reforçam a imagem de que os indígenas permanecem estacionados no tempo, destoam da complexa e variada realidade das cerca de 220 etnias, falantes de cerca de 180 línguas diferentes e que somam cerca de 370 mil pessoas.

 
  Outras cores

Para saber mais sobre a complexa realidade contemporânea dos povos indígenas no Brasil, ver: LUCIANO, Gersem dos Santos O Índio Brasileiro: O que Você Precisa Saber sobre Os Povos Indígenas no Brasil Hoje. Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes, volume 1. Brasília: MEC/SECAD; Rio: LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 85-98171-57-3.

Disponível em Trilhas de conhecimentos

 
 

Tal invisibilização (sobretudo de crianças, jovens e adultos negros e negras) pode ser constatada em diversos espaços e momentos de nossa vida. Se você nunca parou para pensar sobre isso, reflita conosco agora: em geral, qual o pertencimento racial das apresentadoras de programas infantis no Brasil? Qual é a quantidade de personagens negros que atuam na “novela juvenil Malhação”, exibida há anos pela Rede Globo de televisão? Você já observou?

Para algumas pessoas, todavia, talvez ainda esteja difícil compreender como a ausência de personagens negros (ou pertencentes a outros grupos étnicos e raciais tratados como negativos) pode acarretar traumas a crianças, jovens ou adultos, e interferir nos processos de construção identitária. Alguém poderia indagar: o que importa se os(as) modelos que desfilam no São Paulo Fashion Week são majoritariamente brancas (magras e de cabelos lisos, de preferência)? Que diferença faz, falar ou deixar de falar sobre a história do Continente africano, dos afrobrasileiros e dos povos indígenas na escola? Qual o problema se todos os personagens utilizados para decorar os painéis e cartazes da escola são brancos(as) e de olhos claros?

Em uma interessante conferência intitulada “O perigo das histórias únicas”, a romancista Chimamanda Adichie adverte sobre os perigos de ouvirmos apenas uma história sobre outra pessoa, outro país ou sobre nós mesmos.

“Eu sou uma contadora de histórias, e gostaria de vos contar algumas histórias pessoais sobre aquilo que gosto de chamar de “o perigo das histórias únicas”. Eu cresci num campus universitário na parte oriental da Nigéria. A minha mãe diz que eu comecei a ler aos dois anos, embora eu pense que aos quatro provavelmente esteja perto da verdade. Por isso eu fui uma leitora precoce e o que li eram livros para crianças britânicas e americanas. Eu fui também uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos, histórias a lápis com ilustrações a lápis de cor que a minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente o tipo de histórias que eu lia. Todas as minhas personagens eram brancas e de olhos azuis. Brincavam na neve. Comiam maçãs. E falavam muito do tempo, como era maravilhoso o sol ter aparecido. Isto, apesar do fato de eu viver na Nigéria. Eu nunca havia saído da Nigéria. Nós não tínhamos neve. Nós comíamos mangas e nós nunca falávamos do tempo, porque não havia necessidade (...) O que isto demonstra, penso eu, é o quão impressionáveis e vulneráveis somos face a uma história, particularmente as crianças”.


Chimamanda Adichie: O perigo de uma única história - Parte 1

Clique AQUI para ver a Parte 2 deste vídeo no YouTube

Diante da situação de discriminação racial e de invisibilização de algumas identidades étnico-raciais no Brasil, muitas(os) educadoras(es) - sensibilizados pelos impactos negativos que esse clima discriminatório das relações raciais provoca na auto-imagem e na identidade de crianças e jovens negras – têm se vinculado a atividades destinadas ao fortalecimento das identidades negras de seus estudantes. No entanto, poucas vezes ouvimos falar sobre a necessidade de trabalhar, nas escolas, a auto-imagem e a identidade das crianças brancas, como se a identidade delas não precisasse ser discutidas. É preciso, portanto, reorientar o pensamento desses educadores e de todos aqueles que, de modo inconsciente, imaginam que a identidade racial de crianças e jovens brancas já esteja pronta e não precise ser trabalhada.

É preciso enfatizar que crianças e jovens negros e brancos, estão em constante processo de construção identitária. Suas identidades são afetadas pelas novas informações, experiências e relações sociais experimentadas ao longo da infância e da juventude. Nesses períodos, portanto, os referencias identitários aos quais crianças e jovens têm acesso, positivos e negativos, provocam impactos significativos nas imagens que eles constroem de si mesmos e sobre os outros. Nesse sentido, é importante que as escolas e seus professores contribuam para que os referenciais identitários disponíveis às crianças brancas e negras sejam, cada vez mais, desprovidos de estereótipos e conteúdos discriminatórios e capazes de reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnico-racial, sexual etc.

Cabe enfatizar, no entanto, que reeducar as relações étnico-raciais na sociedade brasileira e no interior das instituições escolares não implica, definitivamente, em inverter os polos de hierarquização racial, colocando as populações inferiorizadas no topo da valorização social e a população branca no lugar da inferioridade. Não se trata, portanto, de optar por um afrocentrismo em oposição ao eurocentrismo historicamente vigente em nossa sociedade. Trata-se, ao contrário, de fomentar, tanto nas escolas como nos diferentes espaços da sociedade brasileira, práticas pedagógicas capazes de proporcionar interações sociais valorizadoras das diferentes identidades e pertencimentos étnico-raciais de crianças, jovens, adultos e idosos.