Curso Educação Integral e Integrada

“Ensino integral” no início da República brasileira

A Abolição da Escravatura e a Proclamação da República marcam o final do século XIX em nosso país. Quando esses fatos aconteceram, o Brasil tinha aproximadamente 14 milhões de habitantes, a grande maioria morando no campo, sendo que 85% desse total eram analfabetos (Romanelli, 1983).

Nesse contexto, intelectuais, políticos e grandes proprietários rurais passam a discutir projetos para consolidar a República e modernizar a sociedade, promovendo o crescimento do país (Souza, 1998). Para isso, era preciso reforçar a ideia de nação e formar cidadãos alfabetizados, aptos a participar da vida civil e da política nacional, como trabalhadores livres e eleitores. A educação do povo passa a ser entendida como uma necessidade e a difusão da escola pública é vista como uma estratégia fundamental para a evolução da sociedade brasileira. O modelo de escolarização predominante até então não se mostrava capaz de atender a essa demanda. Por quê?

Durante o período imperial, o acesso à educação escolar realizava-se – além dos colégios particulares - por meio das chamadas “escolas de primeiras letras”. Tratava-se de escolas isoladas nas quais um professor ensinava um grupo de alunos de diferentes idades e níveis de aprendizagem, atendendo a cada um individualmente. Essas escolas podiam ser mantidas pelo poder público ou financiadas diretamente pelos pais de alunos. Em ambos os casos, funcionavam, em geral, em espaços improvisados e, na maioria das vezes, precários, às vezes até mesmo na casa do professor ou em locais que ele alugava com o próprio salário (Faria Filho e Vidal, 2000). Era também frequente o ensino das primeiras letras no próprio ambiente doméstico, por professores contratados pelas famílias. Ou seja, não havia uma rede pública de ensino com capacidade de atender a grandes contingentes da população. A fiscalização das escolas existentes era também problemática, dada a sua dispersão. O professor, ao mesmo tempo, ministrava as aulas e respondia pela escola, o que, além de gerar sobrecarga de trabalho, dificultava o controle externo, pelo governo, do tipo de trabalho realizado.

O currículo das “escolas isoladas” concentrava-se nos saberes elementares sintetizados na fórmula “ler, escrever e contar”. Nos projetos republicanos, entretanto, esperava-se da escola um “ensino integral” que fosse “instrumento de moralização e de civilização do povo” (Souza, 1998). A escola pública seria o meio através do qual as “luzes” da razão e da ciência tomariam o lugar das “trevas” da ignorância e do atraso. Observa-se, já nesse momento, em diferentes discursos, a noção de integralidade da educação, a qual significava, naquele contexto histórico e social, a formação global do indivíduo, abrangendo todo o conhecimento produzido pelas ciências - e não apenas os rudimentos da leitura, da escrita e da aritmética -, e envolvendo tanto a dimensão física quanto a intelectual (Souza, 1998).

“O princípio do ensino integral (...) é o norte, a que deve atender a reorganização da escola. O indivíduo é apenas uma condensação da humanidade, releva, portanto, juntar na composição do seu espírito os elementos essenciais que concorreram no processo histórico do desenvolvimento geral do espírito humano.” (Rui Barbosa, 1947, , apud Souza, 1998,).

...“o professorado espera ver, em breve, em nosso Estado, escolas primárias organizadas segundo o sistema seguido pelos países mais adiantados, com as modificações apenas que o nosso meio exige. Firmado que o ensino deva ser científico, compreende-se que ele deve abranger o estudo do mundo, do homem e da sociedade, isto é, deve ser integral.” (Proposta apresentada pela Comissão de professores públicos para a Reforma da Instrução Pública, em 1891, apud Souza, 1998).

Para proporcionar condições adequadas a esse ensino e, principalmente, para viabilizar a instrução simultânea a um grande número de crianças, foram criados, inicialmente no estado de São Paulo (década de 1890) e, posteriormente, em vários estados brasileiros, os “grupos escolares”, que receberam esse nome por reunir em um só local várias classes, salas de aula, alunos e professores que antes se organizavam em escolas isoladas (Faria Filho e Vidal, 2000; Souza, 1998).

Os grupos escolares seguiam os modelos de “escolas graduadas”, que então já estavam funcionando em países como Inglaterra, França, Espanha, Estados Unidos.  Essa forma escolar era defendida por permitir economizar custos na educação de grande número de crianças e racionalizar o trabalho por meio da divisão de tarefas educacionais, bem como facilitar o controle dos alunos e a fiscalização do processo pedagógico. Vale a pena refletir a respeito dela, uma vez que a encontramos ainda hoje, na maior parte de nossas escolas, especialmente quando funcionam em regime de seriação:

 
   

Escola graduada

Sistema de organização vertical do ensino por cursos ou níveis que se sucedem. As características principais da escola graduada são:

a) agrupamento dos alunos segundo um critério nivelador que, pelo geral, é a idade cronológica para obter grupos homogêneos;

b) professores designados a cada grau;

c) equivalência entre um ano escolar do aluno e um ano de progresso instrutivo;

d) determinação prévia dos conteúdos das diferentes matérias para cada grau;

e) o aproveitamento do rendimento do aluno é determinado em função do nível estabelecido para o grupo e o nível em que se encontra;

f) promoção rígida e inflexível dos alunos grau a grau.”

(Diccionario de las Ciencias de La Educación, 1983, apud Souza, 1998,).

 
 

Nos grupos escolares, o currículo seria voltado para o “ensino integral”, incluindo os saberes elementares (leitura, escrita, cálculo), noções de ciências físicas, químicas e naturais, além de conteúdos de formação moral, cívica e instrumental, como geografia, história, educação cívica, moral, música, ginástica, exercícios militares, desenho, trabalhos manuais (Souza, 1998). A seleção desses conteúdos e atividades para comporem o currículo escolar revela o que era considerado útil e legítimo para a formação do cidadão republicano.

Para o desenvolvimento desse currículo, os prédios escolares foram planejados incluindo espaços considerados, segundo as necessidades e as concepções da época, apropriados ao processo de ensino e de aprendizagem, como salas de aula amplas, biblioteca, museu escolar, sala de professores e de administração (Faria Filho e Vidal, 2000). A respeito dessas últimas, cabe destacar que a gestão também havia mudado, uma vez que o grupo escolar, diferentemente das escolas isoladas, deveria ter funcionários com funções específicas, tais como porteiro e diretor (Veiga, 2007). Vale ressaltar, ainda, que os prédios tinham espaços separados para o ensino de meninos e meninas, muitas vezes incluindo entradas distintas. Um outro aspecto que merece ser mencionado é a imponência dos edifícios construídos para abrigar os grupos escolares, a qual por si só evidencia a expectativa depositada nessas instituições, no contexto republicano: nos dizeres de Souza (1998), verdadeiros “templos de civilização”.

Finalmente, a organização do tempo escolar também constituiu um aspecto central na consolidação desse novo modelo de ensino. Até essa época, a escola “era uma instituição que se adaptava à vida das pessoas”, sendo que nas escolas isoladas os espaços e tempos eram organizados “de acordo com as conveniências da professora, dos(as) alunos(as) e levando em conta os costumes locais” (Faria Filho e Vidal, 2000). Já nos grupos escolares, o tempo passou a ser planejado e controlado por meio de uma grade rígida que cronometrava os períodos de trabalho em cada atividade, de descanso, de entrada e de saída. A jornada diária de aulas era em geral de 4 ou 5 horas, começando às 10 horas da manhã no inverno e às 9 horas no verão. Segundo o costume da época, as famílias almoçavam antes desse horário. É interessante observar que, já na primeira década do século XX, a mudança dos horários escolares a fim de permitir o atendimento aos alunos em dois turnos – 7h às 11h e 12h às 16h -, com o objetivo de ampliar o número de vagas, gerou diversos tipos de resistência, inclusive por ir de encontro aos costumes alimentares das crianças e de suas famílias.

 

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