Finalizando este módulo, nosso propósito agora será discutir o papel da escola diante da educação integral e as implicações da educação integral para a escola. Uma ideia central nos acompanhará: os conceitos, tanto de "educação integral" quanto de "escola", ou as realidades que eles designam, são socialmente construídos. Isso significa que "educação integral" e "escola" não querem dizer a mesma coisa e não são organizadas da mesma forma em todos os tempos e lugares. Ao contrário, ganham significados e formatos diferentes de acordo com a sociedade e com o momento histórico. Essa ideia vem perpassando os diferentes módulos e unidades de nosso curso até agora, mas é importante retomá-la e tê-la em mente, para discutir as relações entre educação integral e escola, na sociedade brasileira atual.

Sendo assim, começaremos essa parte da nossa "viagem" com um passeio pelo passado. Mais precisamente, vamos nos transportar para a última década do século XIX. O que estava acontecendo no Brasil nesse período na sociedade e, especialmente, na educação?

"A Abolição da Escravatura e a Proclamação da República marcam o final do século XIX em nosso país. Quando esses fatos aconteceram, o Brasil tinha aproximadamente 14 milhões de habitantes, a grande maioria morando no campo, sendo que 85% desse total eram analfabetos" Romanelli, 1983

Nesse contexto, intelectuais, políticos e grandes proprietários rurais passam a discutir projetos para consolidar a República e modernizar a sociedade, promovendo o crescimento do país (Souza, 1998). Para isso, era preciso reforçar a ideia de nação e formar cidadãos alfabetizados, aptos a participar da vida civil e da política nacional, como trabalhadores livres e eleitores. A educação do povo passa a ser entendida como uma necessidade e a difusão da escola pública é vista como uma estratégia fundamental para a evolução da sociedade brasileira. O modelo de escolarização predominante até então não se mostrava capaz de atender a essa demanda. Por quê?

Durante o período imperial, o acesso à educação escolar realizava-se – além dos colégios particulares - por meio das chamadas "escolas de primeiras letras". Tratava-se de escolas isoladas nas quais um professor ensinava um grupo de alunos de diferentes idades e níveis de aprendizagem, atendendo a cada um individualmente. Essas escolas podiam ser mantidas pelo poder público ou financiadas diretamente pelos pais de alunos. Em ambos os casos, funcionavam, em geral, em espaços improvisados e, na maioria das vezes, precários, às vezes até mesmo na casa do professor ou em locais que ele alugava com o próprio salário (Faria Filho e Vidal, 2000). Era também frequente o ensino das primeiras letras no próprio ambiente doméstico, por professores contratados pelas famílias. Ou seja, não havia uma rede pública de ensino com capacidade de atender a grandes contingentes da população. A fiscalização das escolas existentes era também problemática, dada a sua dispersão. O professor, ao mesmo tempo, ministrava as aulas e respondia pela escola, o que, além de gerar sobrecarga de trabalho, dificultava o controle externo, pelo governo, do tipo de trabalho realizado.

O currículo das "escolas isoladas" concentrava-se nos saberes elementares sintetizados na fórmula "ler, escrever e contar". Nos projetos republicanos, entretanto, esperava-se da escola um "ensino integral" que fosse "instrumento de moralização e de civilização do povo" (Souza, 1998). A escola pública seria o meio através do qual as "luzes" da razão e da ciência tomariam o lugar das "trevas" da ignorância e do atraso. Observa-se, já nesse momento, em diferentes discursos, a noção de integralidade da educação, a qual significava, naquele contexto histórico e social, a formação global do indivíduo, abrangendo todo o conhecimento produzido pelas ciências - e não apenas os rudimentos da leitura, da escrita e da aritmética -, e envolvendo tanto a dimensão física quanto a intelectual (Souza, 1998).

"O princípio do ensino integral (...) é o norte, a que deve atender a reorganização da escola. O indivíduo é apenas uma condensação da humanidade, releva, portanto, juntar na composição do seu espírito os elementos essenciais que concorreram no processo histórico do desenvolvimento geral do espírito humano." Rui Barbosa, 1947, apud Souza, 1998

..."o professorado espera ver, em breve, em nosso Estado, escolas primárias organizadas segundo o sistema seguido pelos países mais adiantados, com as modificações apenas que o nosso meio exige. Firmado que o ensino deva ser científico, compreende-se que ele deve abranger o estudo do mundo, do homem e da sociedade, isto é, deve ser integral." Proposta apresentada pela Comissão de professores públicos para a Reforma da Instrução Pública, em 1891, apud Souza, 1998

Para proporcionar condições adequadas a esse ensino e, principalmente, para viabilizar a instrução simultânea a um grande número de crianças, foram criados, inicialmente no estado de São Paulo (década de 1890) e, posteriormente, em vários estados brasileiros, os "grupos escolares", que receberam esse nome por reunir em um só local várias classes, salas de aula, alunos e professores que antes se organizavam em escolas isoladas (Faria Filho e Vidal, 2000; Souza, 1998).

Os grupos escolares seguiam os modelos de "escolas graduadas", que então já estavam funcionando em países como Inglaterra, França, Espanha, Estados Unidos. Essa forma escolar era defendida por permitir economizar custos na educação de grande número de crianças e racionalizar o trabalho por meio da divisão de tarefas educacionais, bem como facilitar o controle dos alunos e a fiscalização do processo pedagógico. Vale a pena refletir a respeito dela, uma vez que a encontramos ainda hoje, na maior parte de nossas escolas, especialmente quando funcionam em regime de seriação:

Escola graduada

Sistema de organização vertical do ensino por cursos ou níveis que se sucedem. As características principais da escola graduada são:

  1. agrupamento dos alunos segundo um critério nivelador que, pelo geral, é a idade cronológica para obter grupos homogêneos;
  2. professores designados a cada grau;
  3. equivalência entre um ano escolar do aluno e um ano de progresso instrutivo;
  4. determinação prévia dos conteúdos das diferentes matérias para cada grau;
  5. o aproveitamento do rendimento do aluno é determinado em função do nível estabelecido para o grupo e o nível em que se encontra;
  6. promoção rígida e inflexível dos alunos grau a grau.”
Diccionario de las Ciencias de La Educación, 1983, apud Souza, 1998.

Nos grupos escolares, o currículo seria voltado para o "ensino integral", incluindo os saberes elementares (leitura, escrita, cálculo), noções de ciências físicas, químicas e naturais, além de conteúdos de formação moral, cívica e instrumental, como geografia, história, educação cívica, moral, música, ginástica, exercícios militares, desenho, trabalhos manuais (Souza, 1998). A seleção desses conteúdos e atividades para comporem o currículo escolar revela o que era considerado útil e legítimo para a formação do cidadão republicano.

Para o desenvolvimento desse currículo, os prédios escolares foram planejados incluindo espaços considerados, segundo as necessidades e as concepções da época, apropriados ao processo de ensino e de aprendizagem, como salas de aula amplas, biblioteca, museu escolar, sala de professores e de administração (Faria Filho e Vidal, 2000). A respeito dessas últimas, cabe destacar que a gestão também havia mudado, uma vez que o grupo escolar, diferentemente das escolas isoladas, deveria ter funcionários com funções específicas, tais como porteiro e diretor (Veiga, 2007). Vale ressaltar, ainda, que os prédios tinham espaços separados para o ensino de meninos e meninas, muitas vezes incluindo entradas distintas. Um outro aspecto que merece ser mencionado é a imponência dos edifícios construídos para abrigar os grupos escolares, a qual por si só evidencia a expectativa depositada nessas instituições, no contexto republicano: nos dizeres de Souza (1998), verdadeiros "templos de civilização".

Finalmente, a organização do tempo escolar também constituiu um aspecto central na consolidação desse novo modelo de ensino. Até essa época, a escola "era uma instituição que se adaptava à vida das pessoas", sendo que nas escolas isoladas os espaços e tempos eram organizados "de acordo com as conveniências da professora, dos(as) alunos(as) e levando em conta os costumes locais" (Faria Filho e Vidal, 2000). Já nos grupos escolares, o tempo passou a ser planejado e controlado por meio de uma grade rígida que cronometrava os períodos de trabalho em cada atividade, de descanso, de entrada e de saída. A jornada diária de aulas era em geral de 4 ou 5 horas, começando às 10 horas da manhã no inverno e às 9 horas no verão. Segundo o costume da época, as famílias almoçavam antes desse horário. É interessante observar que, já na primeira década do século XX, a mudança dos horários escolares a fim de permitir o atendimento aos alunos em dois turnos – 7h às 11h e 12h às 16h -, com o objetivo de ampliar o número de vagas, gerou diversos tipos de resistência, inclusive por ir de encontro aos costumes alimentares das crianças e de suas famílias.

Encerramos aqui nosso "passeio" histórico, para fazer algumas reflexões. Não foi por acaso que escolhemos o período que se seguiu à Proclamação da República no Brasil para essa "visita". A criação dos Grupos Escolares em nosso país representou a consolidação de uma determinada cultura escolar que persiste até os dias atuais na organização do ensino básico: seriação, homogeneização dos conteúdos e das atividades, fragmentação do tempo, divisão do trabalho docente, demarcação e separação clara dos espaços e tempos escolares em relação aos espaços e tempos da vida da comunidade.

Como vimos, esse tipo de organização foi pensado para facilitar, em termos de custos, de organização e de controle, o atendimento a grandes contingentes de população infantil – e certamente esse é um dos motivos pelos quais ele continua tão forte nos dias atuais. Entretanto, seus limites e problemas têm sido largamente debatidos. Trata-se de um formato escolar que não favorece o respeito aos ritmos e aos estilos individuais de aprendizagem e à diversidade sociocultural dos alunos; que não estimula as trocas entre escola e comunidade, fazendo da primeira um mundo à parte e, muitas vezes, sem sentido na vida dos estudantes; que tem gerado muita exclusão, na forma de abandono, evasão, repetência e fracasso escolar. Passa-se, então, a questionar formas de renovar esse modelo - seja no que tange a aspectos mais específicos, como a integração entre as disciplinas ou a relação com a comunidade, seja no que diz respeito a suas estruturas fundamentais de organização do espaço, do tempo, do currículo, dos sujeitos envolvidos.

Afinal, se a escola, conforme dissemos no início dessa Unidade, é uma construção sociocultural, isso quer dizer que, da mesma forma como o modelo da "escola graduada" foi considerado um avanço no início da República brasileira, outros modos de organização escolar podem ser propostos e mostrar-se mais adequados para contextos diferentes. Na verdade, isso efetivamente tem acontecido, embora em proporção pequena, se considerarmos o número de casos em que predomina o modelo escolar tradicional. No Módulo 3, discutimos diversos movimentos que, ao longo da história da educação no Brasil, tentaram redesenhar o formato da escola, a partir de diferentes concepções de educação e de educação integral. E, já que fizemos um "passeio" pelo passado e conhecemos a gênese do modelo tradicional de organização do sistema escolar em nosso país, vale a pena, agora, "visitar" algumas realidades contemporâneas, com as seguintes perguntas em mente:

  • Em que cenários socioculturais vivemos hoje?
  • Que tipos de escola podem ser organizados e contribuir para a formação das crianças e jovens nesses contextos?
  • O que significa "educar integralmente" nesses cenários?

Flashes de viagem

Com os links a seguir, pretendemos possibilitar um "passeio" por escolas contemporâneas que, a fim de dialogar melhor com seus contextos, organizaram-se em diferentes formatos e modos de funcionamento. Visite algumas delas e veja como são concebidos, propostos e vividos os espaços escolares, os tempos, as atividades educativas, os conteúdos curriculares, os papéis dos sujeitos, a relação com o entorno... São diferentes modos de "ser escola", de fazer educação.

Escola da Ponte, Portugal

Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, São Paulo

Escolas mantidas pelo Instituto Lumiar com destaque para a EMEIR Antônio José Ramos, em Santo Antônio do Pinhal, São Paulo

Escolas Famílias Agrícolas, Brasil

Escola Indígena Baniwa-Coripaco-Pamáali (EIBC-Pamáali), Amazonas

Alguns de vocês podem estar pensando que até agora, nessa Unidade, falamos muito mais sobre “escola” do que sobre “educação integral”. Ocorre que vivemos um momento histórico em que a discussão sobre educação integral, no Brasil, tem sido bastante vinculada à idéia de ampliação do tempo letivo, em direção a uma escola de tempo integral. Entretanto, a noção de integralidade da educação não é necessariamente associada ao tempo integral na escola. No limite, é possível pensar em uma proposta de educação integral sem ampliação da jornada escolar, como também pode acontecer de se ocupar a criança ou o jovem por 9 horas diárias na escola, sem se conseguir assegurar a integralidade da formação – tudo isso sempre na dependência do conceito de educação integral adotado. Por isso, é imprescindível, no debate sobre educação integral e escola, refletir sobre as concepções de escola e de educação integral, as formas como ambas podem se organizar e sobre as relações entre elas.

É importante considerar que, como já tratado, a discussão sobre educação integral está ligada, atualmente, à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes – direito tanto ao desenvolvimento integral quanto à proteção, à alimentação, à saúde, à cultura, ao lazer... Nesse sentido, outras instituições que não apenas a escola vieram, ao longo do tempo, implementando projetos de atendimento que buscam incidir sobre a educação integral. De forma geral, podem-se identificar três modalidades desse tipo de atendimento:

  • Políticas no campo da assistência social, em programas de atendimento à infância e à juventude em condição de vulnerabilidade social e fragilização de vínculos. É o caso do PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que assume quatro horas diárias no atendimento a crianças vitimizadas pela exploração do trabalho.
  • Iniciativas do terceiro setor, geridas por organizações sociais que oferecem atendimento sócio-educativo a crianças no turno contrário ao horário regular das aulas na escola;
  • Políticas de educação que ampliam o tempo da jornada escolar com diferentes ofertas e modelos de atendimento.

Uma vez que a legislação atual prevê a expansão progressiva da jornada escolar, na direção de uma escola de tempo integral, impõe-se o diálogo entre escola e essas outras instituições que vêm ocupando espaços no atendimento sócio-educativo a crianças e jovens. Alguns dos projetos de educação integral atualmente em desenvolvimento nas redes de ensino brasileiras estruturam-se na articulação com essas instituições não-escolares, compondo redes de parceria. Sendo esse o caso ou não, a existência desses projetos fora da escola deixa claro que a educação integral é assunto da sociedade, e não apenas dos sistemas de ensino.

 

Retratos revelados na viagem

Nesse ponto de nossa “viagem”, é interessante definir alguns conceitos que vêm permeando a conversa e que agora já temos condições de esclarecer melhor:

  • Educação integral: Expressão que pode assumir diferentes significados a partir de concepções educacionais, políticas, sociais, culturais. Em geral, está associada à multidimensionalidade da formação do sujeito, buscando-se o desenvolvimento integrado de todas as suas potencialidades. Remete também à idéia de cidadania e de garantia de direitos.
  • Educação em tempo integral: Tem sido utilizada, no caso brasileiro, para designar a jornada escolar igual ou superior a sete horas diárias (art. 4º, Decreto nº. 6.253/2007).
  • Jornada ampliada: Jornada escolar superior ao mínimo definido pela legislação, que é de 4 horas diárias.
  • Contraturno da escola: Turno contrário ao das aulas regulares, no qual têm se desenvolvido atividades de educação integral, coordenadas pela escola ou por outras instituições.
  • Ações sócio-educativas: Ações geridas por instituições não governamentais ou políticas no campo da assistência social, que buscam incidir sobre a garantia de direitos das crianças e dos adolescentes, articulando medidas de proteção, cuidados e formação no contraturno da escola.

Ultrapassando fronteiras

Para saber mais a respeito de educação integral na escola, fora da escola e na articulação entre escola e instituições não escolares, leia:

1) Programa Mais Educação – Passo a Passo

2) Salto para o Futuro – Educação Integral

3) Rede de Saberes Mais Educação: pressupostos para projetos pedagógicos de Educação Integrada: caderno para professores e diretores de escolas.

No caso dos sistemas de ensino, vimos que, no contexto social e educacional específico do período pós-proclamação da República, já se falava em “educação integral” ou “ensino integral”, e que a forma de conceber essa integralidade estava relacionada às visões de mundo dominantes naquele contexto. Constatamos, ainda, que, em tal cenário, a organização da educação escolar passou por mudanças em relação a aspectos como espaço, tempo, sujeitos envolvidos, currículo (conteúdos/atividades desenvolvidas), gestão, para atender às necessidades identificadas a partir das referidas concepções.

No módulo II, tomamos contato com outras concepções de educação integral que foram formuladas ao longo do século XX e vimos também que cada uma delas trazia implicações para o modo de organizar a escola em relação aos mesmos aspectos destacados anteriormente.

A realidade social foi mudando e hoje vivemos em um país bastante diferente daquele Brasil que emergiu da Proclamação da República. Nossa população é predominantemente urbana, tem acesso às possibilidades e, ao mesmo tempo, enfrenta os desafios e problemas da vida nas cidades, marcadas pela desigualdade. As mulheres participam fortemente do mercado de trabalho. As famílias têm novas estruturas e novas dinâmicas de funcionamento, experimentam novos tipos de relações. Diferentes tecnologias de informação e de comunicação permeiam o cotidiano e modificam os processos sociais. Os conhecimentos e informações multiplicam-se com grande velocidade; o leque de competências e habilidades necessárias ao exercício da cidadania também se amplia. Movimentos sociais lutam e conquistam direitos de grupos tradicionalmente discriminados, como as mulheres, os afrodescendentes, os indígenas, os homossexuais e a população do campo, por exemplo; e essa luta inclui a defesa da legitimidade e do valor de diferentes saberes e práticas, não apenas aqueles tradicionalmente selecionados pela escola para transmissão. No campo educacional, as crianças e jovens brasileiros têm, hoje, acesso praticamente universalizado ao Ensino Fundamental, mas não ao Ensino Médio. Em ambos os níveis de escolaridade, a permanência na escola e a qualidade do ensino ainda são grandes desafios.

É nesse cenário que se instala uma tendência de ampliação do tempo na escola e se recoloca a discussão sobre educação integral. A ampliação da jornada escolar na rede pública de ensino apresenta-se como premência, em virtude tanto de necessidades sociais, ligadas à garantia dos direitos de crianças e jovens, quanto de demandas propriamente educacionais, relacionadas ao tempo necessário à qualidade da educação, diante das demandas contemporâneas. Processos como os descritos no parágrafo anterior, para citar apenas alguns, fazem com que “educar integralmente” seja visto, mais do que nunca, como uma necessidade.

Mas, o que significa, hoje, educar integralmente? Como organizar essa ampliação da jornada escolar de modo a efetivar uma educação integral? Que aspectos contemplar no currículo? Como organizar o tempo expandido? Em que espaços? Com que atores?

Essas são perguntas que vêm sendo respondidas de diferentes maneiras no contexto brasileiro atual. Uma pesquisa nacional, financiada pelo MEC (2009), teve como objetivo justamente mapear e conhecer melhor esses diferentes formatos. Vejamos alguns exemplos levantados pela pesquisa:

Unidade Integrada Municipal Sinhá Castelo –Caxias - MA

Localizada na zona rural do município de Caxias, no Maranhão. Nessa escola funciona, desde 2006, uma COM-VIDA, Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida, voltada para a preservação ambiental, por meio do envolvimento da comunidade. A escola não tem um projeto específico de ampliação da jornada escolar, mas a educação ambiental é considerada um importante componente da formação integral dos alunos.

Os alunos participam de atividades como: Horta na Escola, limpeza dos rios locais, produção do jornal e vídeo sobre meio ambiente, recuperação das veredas e nascentes na comunidade, implantação de roças verdes (plantio sustentável) nas casas das famílias. T, todas essas atividades ocorrem no contra-turno das aulas, conforme as necessidades de trabalho.

A escola privilegia um trabalho de educação ambiental que integra e a escola e a comunidade, realizando trocas do conhecimento produzido na escola com saberes e práticas da comunidade. Na escola Sinhá Castelo, a ampliação das dimensões de formação dos alunos se dá a partir das potencialidades e desafios do espaço, e se desdobra em conhecimentos nos campos da Geografia, História, Ciências Naturais, letramento, mas também do pertencimento social e da cidadania.

CAIC Helyon de Oliveira – Juiz de Fora / MG

Os CAICs – Centros de Os Apoio Integral à Criança e ao Adolescente – fizeram parte de uma política pública federal da década de 1990. O CAIC Helyon de Oliveira foi criado em 1994, em um bairro da periferia de Juiz de Fora. Tem como eixo de trabalho a integração comunidade-escola. Além do ensino regular, oferece uma série de projetos, em módulos de cinquenta minutos cada um, tais como: ginástica, futebol, informática, acompanhamento escolar (reforço), artesanato, teatro, vôlei, contação de histórias, dança. Os projetos podem ser oferecidos em até três turnos e funcionam mediante matrícula, aberta tanto aos alunos da escola (cada aluno pode se matricular em até três projetos, em turno diferente daquele no qual frequenta o ensino regular) quanto às pessoas da comunidade (adultos, idosos, jovens e crianças).

Assim, a ampliação da jornada não é assegurada para todos os alunos, mas ligada ao desejo deles. A maioria dos estudantes que participam do projeto não almoçam na escola. Os projetos acontecem em espaços apropriados a cada atividade (ateliês de artes, quadras, palco, laboratório de informática, etc.), no próprio prédio escolar. Os responsáveis pelo desenvolvimento dos projetos são professores contratados ou efetivos.

Programa Escola Integrada – Belo Horizonte / MG

O Programa Escola Integrada, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, prevê a permanência das crianças na escola por 9 horas diárias, incluindo turno regular, almoço, higiene e oficinas realizadas no contraturno, com duração de 1h30min cada. As oficinas são ministradas: a) por estudantes das Universidades parceiras, os quais recebem uma bolsa mensal e são orientados por professores universitários, ou b) por agentes culturais da comunidade, contratados pela Caixa Escolar.

Há um vasto “cardápio” de oficinas possíveis, de acordo com as ofertas das Universidades e dos agentes culturais. Cada escola monta seu programa de oficinas a partir desse cardápio, contemplando tanto atividades de caráter esportivo, artístico e cultural quanto outras mais estritamente pedagógicas.

A escola privilegia um trabalho de educação ambiental que integra e a escola e a comunidade, realizando trocas do conhecimento produzido na escola com saberes e práticas da comunidade. Na escola Sinhá Castelo, a ampliação das dimensões de formação dos alunos se dá a partir das potencialidades e desafios do espaço, e se desdobra em conhecimentos nos campos da Geografia, História, Ciências Naturais, letramento, mas também do pertencimento social e da cidadania.

Programa Mariana Cidade-Escola – Mariana / MG

Todas as escolas de Ensino Fundamental da rede municipal de Mariana oferecem aos alunos a possibilidade de jornada diária de 9 horas, incluindo ensino regular, almoço, higiene e participação em oficinas realizadas no contraturno escolar. As oficinas são ministradas por monitores contratados pela Secretaria Municipal de Educação, os quais podem ou não ter formação específica na área de Educação (exigência de Ensino Médio completo).

A Secretaria Municipal de Educação prevê, para cada ano, um “cardápio” de oficinas dentre as quais as escolas fazem suas escolhas, sendo uma parte delas, entretanto, de oferta obrigatória para a escola. Incluem-se, nesse “cardápio”, oficinas de aprendizagem (deveres de casa e reforço escolar), esportes, cidadania ambiental, Educação Patrimonial, cultura, diversidade e História, artesanato e saber popular, teatro, formação musical, dança, Inglês e Informática.

Na maior parte das escolas, as oficinas são realizadas nas dependências do próprio estabelecimento. Quando isso não é possível, a Secretaria de Educação aluga espaços na comunidade, que funcionam como “anexos” da escola. A participação dos alunos no Programa se dá mediante adesão das famílias.

A fotografia retrata um momento de culminância do Projeto, que é o Festival de Artes Integradas, no qual são apresentados números artísticos resultantes do trabalho nas oficinas.

Escola Padrão de Tempo Integral - Palmas /TO

Uma das modalidades de atendimento escolar em tempo integral desenvolvidas em Palmas – TO é a “Escola Padrão de Tempo Integral”, como é o caso da Escola de Tempo Integral Padre Josimo Tavares.

A escola possui prédio especialmente construído para abrigar o projeto de tempo integral, incluindo uma quadra poliesportiva, duas piscinas, dois pátios, refeitório, biblioteca e um bom auditório, além das salas de aula. Os alunos têm uma jornada escolar diária de 9 horas e meia, incluindo desjejum, almoço e lanche, bem como atividades educacionais que constituem uma grade curricular extensa e diversificada.

Além do currículo básico, há atividades extras de Linguagem e de Matemática, de Artes e de esporte, dadas em forma de oficinas, no contraturno das aulas regulares. Porém, na prática, não há uma divisão explícita entre esses dois tempos, já que oficinas e aulas são dadas por professores. Também há oficinas de treinamento após o horário regular, em que os alunos interessados desenvolvem suas aptidões artísticas e/ou esportivas em atividades como natação e dança. Todas as atividades acontecem dentro da escola, orientadas por professores.

A seleção desses exemplos não seguiu critérios de representatividade da experiência no cenário nacional. Apenas trouxemos alguns dados já disponíveis em uma pesquisa de âmbito nacional, cujos resultados ainda não foram integralmente divulgados. Porém, outros projetos de repercussão nacional merecem ser conhecidos:

Ultrapassando fronteiras

  1. Programa Bairro-Escola – Nova Iguaçu / RJ
    Sites: www.bairroescola.novaiguacu.rj.gov.br e http://www.novaiguacu.rj.gov.br/bairro_escola.php
  2. Programa de Educação em Tempo Integral de Apucarana / PR
    Site: http://www.apucarana.pr.gov.br
  3. Vale lembrar que o Texto Referência do MEC sobre Educação Integral (Série Mais Educação) apresenta uma visão sintética desses projetos.
    Site: cadfinal_educ_integral.pdf
  4. Também vale conhecer o relatório final da etapa quantitativa da pesquisa, o qual apresenta resultados gerais sobre as experiências de jornada escolar ampliada no Brasil:
    Disponível aqui.

A análise desses exemplos, bem como a dos resultados gerais da pesquisa, evidencia que:

a) Se “educação integral” é um conceito que remete, como temos visto ao longo do curso, à formação do sujeito em suas diferentes dimensões, a definição de quais são essas dimensões ou de quais são as dimensões prioritárias a serem enfatizadas na formação varia de acordo com cada contexto. Assim, em um determinado contexto se enfatiza a educação ambiental; em outro podem ser mais focalizadas as práticas esportivas e artísticas; e, em outro, a perspectiva comunitária... Portanto, o diagnóstico do contexto local, de suas demandas e suas potencialidades formativas, é fundamental para construir um projeto de educação integral coerente com a realidade em que se desenvolve e que possa efetivamente fazer sentido para os sujeitos envolvidos.

b) Nas diferentes práticas e propostas, verifica-se a centralidade da escola como instância formadora e articuladora do projeto de educação integral. Entretanto, trata-se de uma escola que pode se organizar:

  • compondo diferentes tipos de currículo, a partir das dimensões focalizadas e da maior ou menor integração entre as atividades que preenchem a jornada educativa oferecida...
  • de várias formas diferentes em relação ao formato das atividades propostas: aulas, oficinas, projetos, grupos de trabalho, comissões...
  • congregando, em maior ou menor escala, diferentes tipos de atores no papel de educar: professores, monitores, agentes culturais, educadores comunitários, educadores sociais, estagiários...
  • articulando diferentes espaços, em diferentes proporções e de diferentes modos: espaços da própria escola e espaços da comunidade, do território educativo...
  • compondo tudo isso em diferentes desenhos do tempo educativo: jornadas integrais de 9 horas diárias, jornadas ampliadas de 5, 6, 7, 8 horas, jornadas variáveis de acordo com o tipo de atividade escolhido... tempo-atividade de 50 minutos, de 1h. e 30 min., tempos que podem não ser fixos, resultando das necessidades de trabalho... jornada organizada em turno x contraturno, com aulas regulares no primeiro e oficinas ou projetos no segundo, ou jornada ao longo da qual todas as atividades se dispõem de modo intercalado...

Evidentemente, cada formato adotado traz, em si, potencialidades e limites. Nesse contexto, fica claro que não há opções neutras, ou seja, as diferentes opções carregam em si distintas possibilidades educativas. Contratar somente professores ou também outros tipos de agentes educadores, concentrar as atividades no espaço escolar ou utilizar outros espaços, organizar as atividades em turno e contraturno como dois blocos distintos ou organizá-las de forma intercalada, propor aulas em tempo integral ou alternar aulas, oficinas, projetos, etc., são decisões que precisam ser tomadas levando em conta não apenas as contingências de recursos ou as possibilidades concretas, mas também considerando as diferentes mensagens educativas que representam, as distintas concepções de educação integral que concretizam.

Trata-se, portanto, de opções a serem feitas de modo refletido, debatido e embasado, no âmbito da escola ou do sistema de ensino, buscando articular coerentemente o diagnóstico da realidade, os princípios educativos que norteiam o trabalho educacional, os objetivos a serem alcançados e as estratégias possíveis de implementação. Ou seja, está se falando de projeto político-pedagógico, de planejamento integrado, os quais, por sua vez, pressupõem tempos de trabalho coletivo entre os educadores envolvidos com os mesmos grupos de alunos, bem como a formação desses educadores. Refletir sobre a escola na sua integralidade é uma condição fundamental para que o maior tempo na escola se traduza, de fato, em educação integral.

CURSO DE APERFEIÇOAMENTO / ATUALIZAÇÃO: “EDUCAÇÃO INTEGRAL: ESCOLA E CIDADE”
MÓDULO 4 – Educação Integral e Integrada: reflexões e apontamentos
UNIDADE 3 - Educação integral e a escola

Autores:

André Deodato (Mestrando em Educação – FAE/UFMG)
Brenda Rios (Especialista em Lazer - FAE/UFMG)
Camila do Carmo Said (Mestre em Educação – FAE/UFMG)
Levindo Diniz Carvalho (Doutorando em Educação – (FAE/UFMG)
Lúcia Helena Alvarez Leite (FAE/UFMG)

Referências bibliográficas:

    BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. (Obras completas, v. 10, t. 1-4). Apud SOUZA, Rosa Fátima de. op. cit.

    BRASIL.  Ministério da Educação. Educação integral / educação integrada e(m) tempo integral: concepções e práticas na educação brasileira. Mapeamento das experiências de jornada escolar ampliada no Brasil. Brasília: MEC/UFPR, UNB, UNIRIO, UFRJ, UERJ, UFMG, ULBRA, 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br.

    BRASIL. MEC – Ministério da Educação. Educação integral / educação integrada e(m) tempo integral: concepções e práticas na educação brasileira. Mapeamento das experiências de jornada escolar  ampliada no Brasil. Brasília: MEC/UFPR, UNIRIO, UnB, UFMG, 2009. Disponível em: www.mec.gov.br/maiseducacão. Acesso em 10/07/2010.

    FARIA FILHO, L. M. de, VIDAL, D. G. Os tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, 14, p. 19-34, mai.-ago. 2000.

    ROMANELLI, O. de O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.

    SOUZA, R. F. de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo: 1890-1910. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

    VEIGA, C. G. História da educação. São Paulo: Ática, 2007.