Nossa viagem se iniciou com um olhar sobre as mobilizações sociais situadas na década de 1950, quando diversos movimentos articulados à educação e à cultura foram criados e disseminados. Destacamos que aquele período foi marcado pela construção de um ideal em torno da educação popular. Nessa jornada, a educação, entendida como um direito e um caminho para incluir e integrar a população historicamente marginalizada dos processos sociais, políticos, econômicos e culturais, ganhou espaço no cenário político.

Num outro ponto de parada, localizamos os vários movimentos de renovação pedagógica que tiveram seu ápice em meados da década de 1990 e visavam ao atendimento educacional, sobretudo nas escolas públicas. Como decorrência, algumas propostas educacionais passaram a reorganizar os seus tempos e espaços, adotando os ciclos de formação, ancoradas em um discurso sobre a necessidade de se construir uma escola de direitos e voltada para a formação integral de seus sujeitos.

Nessa jornada, concluímos que pensar uma educação integral é pensar na formação humana de crianças e de jovens, em conexão com a sociedade mais ampla, mas com laços sociais que sustentem o direito à educação e à proteção social desses sujeitos.

No módulo 2, nos dedicamos a situar a educação integral no espaço. Para isso, ampliamos nosso enfoque sobre a cidade: há cidades dentro da cidade, há tensões entre ser da favela e não-ser da favela. Há marcas elaboradas pela cidade legal e que identificam os moradores como favelados e contramarcas identitárias elaboradas pelos moradores para ressignificarem sua trajetória e inserção social. Refletimos sobre a perspectiva da cidade educadora e sobre o território que vai sendo recriado por práticas educativas que extrapolam a escola. Nesse ponto de vista, localizamos as possibilidades de integração entre ações educativas, culturais e lúdicas presentes no território e vinculadas ao processo formativo. Seguindo por esse caminho, refletimos sobre a gestão das propostas de escola integral dimensionando a intersetorialidade.

Neste módulo, vamos nos deter sobre a educação integral na perspectiva dos arranjos educativos locais. O que as propostas educativas podem provocar no território em que se instalam? Como o território pode influenciar, dialogar, se articular com as propostas educativas? Esse será o nosso ponto de partida.

Para discutir os arranjos educativos locais, dois elementos ganham força: o território e os atores/movimentos sociais.

Território como espaço vivido

No módulo 2, acenamos que o território implica no uso que se faz do espaço. Essa noção foi trabalhada pelo geógrafo Milton Santos, que apresentou a seguinte definição de território:

O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da resistência, das trocas materiais e espirituais e da vida sobre os quais ele influi. Quando se fala em território, deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000 p. 96

Milton Santos, geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo foi um dos intelectuais brasileiros de maior projeção internacional. Autor de mais de 40 livros publicados em diversos países realizou importante reflexão sobre as conseqüências da globalização para a humanidade. Foi um dos expoentes do movimento de renovação crítica da geografia. Recebeu, em 1994, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud. Lecionou em importantes universidades na França, Estados Unidos, Tanzânia e Venezuela entre outros países. Nasceu na cidade de Brotas de Macaúbas (BA) em 1926 e faleceu em São Paulo em 2001.

 

Esse teórico enfatiza o território usado e inclui os sujeitos sociais e sua ação. Em outra publicação, o autor acrescenta que é importante saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual. (SANTOS, Milton. Território e Sociedade: entrevista com Milton Santos. SEABRA, Odete; CARVALHO, Mônica; LEITE, José Corrêa (entrevistadores). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 26)

Considerar o território a partir de seu uso e juntamente com os atores que o utilizam não significa desconsiderar as condições oferecidas nos lugares da produção, da circulação e do consumo. Já discutimos que a globalização revaloriza os lugares de acordo com o que podem oferecer às empresas. Estamos chamando a atenção para o fato de que o território não é produção linear dos impactos da produtividade, ele é fluxo, relação, intermediação; é composto e recomposto pela ação dos atores sociais. Não se trata de uma relação direta com o espaço, mas de uma apropriação, produção e reprodução da existência mediada pelas heranças sociais e materiais e pelo presente social.

Movimentos e atores sociais: a educação além das fronteiras da escola

São nas ações coletivas que se tecem e se entremeiam os projetos pessoais e a luta por maior participação social. Os atores sociais, nesse processo, elaboram identidades coletivas nas quais ocorrem pertencimentos identitários que sedimentam o grupo e lhes conferem coesão social.

A relação entre movimentos sociais e educação foi explorada desde o módulo II. Podemos constatar que essa relação não se refere exclusivamente à reivindicação de movimentos sociais pela ampliação do direito a educação. Devemos considerar, também, o caráter educativo dos movimentos sociais, suas virtualidades formadoras. Segundo Miguel Arroyo (2003), há um papel pedagógico desempenhado pelos movimentos sociais na reeducação da velha cultura política: reeducam o pensamento educacional, a teoria pedagógica; reeducam a sociedade no aprendizado dos direitos sociais, especificamente do direito à educação.

Miguel Arroyo destaca, ainda, o caráter educativo dos movimentos sociais, quando expandem o significado da formação humana, concebendo-a inseparável da produção mais básica da existência, do trabalho, das lutas por condições materiais de moradia, saúde, terra, transporte, por tempos e espaços de cuidado, de alimentação e de segurança. Os movimentos sociais articulam coletivos nas lutas pelas condições de produção da existência popular mais básica. Aí se descobrem e se aprendem como sujeitos de direitos.

Outra sinalização importante trazida pelo autor refere-se à articulação entre educação e cultura, ou, segundo suas palavras, ‘repor a cultura como terreno da pedagogia’. Miguel Arroyo ainda nos provoca com uma pergunta: ‘Se a cultura é um eixo da ação coletiva, como assumi-la como um eixo da ação educativa?’

Em sua reflexão, esse pesquisador situa a necessidade de encarar pedagogicamente a cultura e os sujeitos culturais. Isso significa sempre considerar aquilo que Milton Santos chamou de herança social instalada no território, as formas de viver e de produzir de determinado local.

Enfim, perguntar-nos pelas virtualidades formadoras dos movimentos sociais é interrogar sobre os aspectos que eles trazem para a teoria pedagógica e para o fazer educativo, tanto nas propostas de educação escolar quanto não escolar.

Atores sociais e ações coletivas: o movimento do território

Nos anos 1980, a ação intensa dos movimentos sociais em torno de reivindicações de melhores condições de vida, de ampliação de canais de participação, do reconhecimento de identidades e contra as formas de preconceito e discriminação ganharam a cena da política brasileira.

As análises sobre a ascendência dos novos movimentos sociais no Brasil no contexto dessa década indicam sua capacidade de desencadear ressignificações nas relações sociais do país e assinalam que grupos chamados minoritários reconheciam sua posição de subalternidade e elaboravam mecanismos de contraposição a essa situação. As lutas contínuas contra projetos dominantes expandiram as fronteiras da política institucional e denotaram a construção da democracia como processo descontínuo no qual se redefiniram as noções convencionais de cidadania e de participação. Sobre esse aspecto, Miguel ARROYO (1997, p. 25) afirma:

Os setores populares submetidos à rotina da reprodução da sobrevivência, fechados por décadas nesse estreito círculo das necessidades mais prementes, submetidos a um estilo de política clientelística, esses setores vão crescendo como membros de grupos, se associam, reivindicam, discutem politicamente suas condições de vida e buscam canais de representação na condução dos serviços e espaços públicos. Vão redefinindo a política clientelística. Pressionam por uma política de cidadania.

Nos anos de 1990, muitos grupos se constituíram como atores sociais que desenvolvem ações organizadas com populações específicas e ficaram conhecidas por Organizações não governamentais, também chamadas ONGs. Essas associações se declaram com finalidades públicas e sem fins lucrativos, desenvolvem ações em diferentes áreas e, geralmente, mobilizam a opinião pública e o apoio da população para modificar determinados aspectos da sociedade.

É preciso constatar que o surgimento dessas organizações, sem fins lucrativos, que têm como objetivo o desenvolvimento de atividades de interesse público, se deu pelo motivo da ineficiência, por parte do poder público, para atender as necessidades da sociedade.

Betinho definia as organizações não governamentais da seguinte forma:

"uma ONG se define por sua vocação política, por sua positividade política: uma entidade sem fins de lucro cujo objetivo fundamental é desenvolver uma sociedade democrática, isto é, uma sociedade fundada nos valores da democracia – liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade. (...) As ONGs são comitês da cidadania e surgiram para ajudar a construir a sociedade democrática com que todos sonham"

 

Hebert José de Souza, conhecido como Betinho, nasceu em Bocaiúva, Minas Gerais, em 1935. Sociólogo, foi um grande ativista na luta pelos direitos humanos no Brasil. Concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida. Foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE). Betinho faleceu em 1997. Você pode conhecer mais sobre sua trajetória no site do IBASE.

 

Sabemos que a presença das ONGs no cenário político brasileiro não é algo simples e sem tensões. Mas o que nos interessa aqui é a emergência de sujeitos políticos e movimentos sociais que buscam alternativas de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis e lutam contra as desigualdades sociais e pela universalização e construção de novos direitos. A presença desses atores sociais no território deve chamar nossa atenção.

Revelamos aqui um retrato dessa forma de atuação no território:

Seguindo trilhas

Visita guiada ao site do Afroreggae www.afroreggae.org

Antes de iniciar a visita ao site do Afroreggae, tente se lembrar, recolher ou pesquisar notícias sobre essa organização veiculadas na mídia.

PROMOVER A INCLUSÃO SOCIAL E A JUSTIÇA SOCIAL ATRAVÉS DA ARTE: DE ARMAS A TAMBORES

Fundado em 21 de janeiro de 1993, o Grupo Cultural AfroReggae foi criado para transformar a realidade de jovens moradores de favelas utilizando a educação, a arte e a cultura como instrumentos de inserção social. O embrião do projeto foi o jornal AfroReggae Notícias, cuja primeira edição circulou em agosto de 1992. O informativo – distribuído gratuitamente e sem anunciantes – logo se tornou um canal aberto para o debate de idéias e de problemas que afetam a vida de negros e pobres.

Em 29 de agosto daquele mesmo ano, ocorreu a Chacina de Vigário Geral, na qual 21 moradores inocentes foram assassinados. Um mês depois, os produtores do AfroReggae Notícias chegaram à favela de Vigário Geral oferecendo oficinas de percussão, capoeira, reciclagem de lixo e dança afro para os moradores dali.

Desde então, o Grupo Cultural AfroReggae investe no potencial de jovens favelados, levando educação, cultura e arte a territórios marcados pela violência policial e pelo narcotráfico. Ao longo de seus 17 anos (que foram completados no dia 21 de janeiro de 2010), o AfroReggae vem utilizando atividades artísticas, como percussão, circo, grafite, teatro e dança para tentar diminuir os abismos que separam negros e brancos, ricos e pobres, a favela e o asfalto, a fim de criar pontes de união entre os diferentes segmentos da sociedade.

Ao entrar no site, inicie seu trajeto pelo Manifesto Afroreggae localizado na barra Quem somos nós. Nesse espaço você poderá conferir a atuação da ONG: em que espaços a ONG atua? Por que atua nesses espaços? Quais são as atividades desenvolvidas? Assista também ao vídeo institucional.

Você poderá entrar em cada um dos espaços onde a ONG desenvolve atividades e conferir como se organizam. Observe que, em cada território, desenvolvem-se atividades distintas e articuladas com outras organizações. Por exemplo, no Complexo da Maré, a atuação é compartilhada com o Observatório de Favelas.

Confira, na barra superior, as publicações.

Ultrapassando fronteiras

Observe que a tônica das ações desenvolvidas pelo Afroreggae é a cultura e a educação. Já o Salão do Encontro é uma importante iniciativa que pode nos ajudar a refletir sobre os vínculos entre trabalho e educação, a partir das relações entre educação e movimentos sociais, tal como propõe Arroyo.

Localizado na cidade de Betim, MG, suas ações se concretizam através de programas e projetos ligados à educação, à cultura, à formação de artesãos e ao trabalho com tear, cultivo de horta, pomar e plantas medicinais e com madeira na fabricação de móveis, brinquedos, objetos de arte etc.

Faça uma visita ao Salão e ao site: salaodoencontro.org.br.

Se, como nos indicou Miguel Arroyo, podemos aprender com os movimentos e organizações sociais, o que o Afroreggae e o Salão do Encontro Betim nos ensinam?

Flashes de viagem

O uso e as concepções em torno do território, bem como a sua ressignificação foram elementos abordados no episódio ‘Correio’ da minissérie ‘Cidade dos Homens’ exibida pela Rede Globo de televisão. O episódio está disponível no Youtube. Acesse e reflita sobre as discussões que temos empreendido neste módulo:

Encontros no território: as redes sociais

A participação política que ressignificou as relações políticas do país a partir dos anos de 1980 trouxe para o território uma variedade expressiva de movimentos, de sujeitos e de atores sociais. Vimos, no caso do Afroreggae, forma de atuação conjunta de duas instituições distintas: o Afroreagge e o Observatório de Favelas, por seus objetivos comuns e características próximas, compartilham projetos desenvolvidos num mesmo território.

Essa forma de articulação de organizações diversas para a proteção de crianças, adolescentes, jovens, negros e moradores de favelas se inspira no movimento instalado no país já no final dos anos de 1970, ainda no contexto da ditadura militar. Naquele momento, várias instituições envolveram-se na denúncia do fracasso das políticas sociais vigentes e atuaram na construção de novas políticas para crianças e adolescentes: movimentos liderados por profissionais, intelectuais e religiosos ligados a essa área. A luta pelo direito da infância se inseria em movimentos de resistência política à ditadura militar.

A atuação de agentes que buscavam transformar a FEBEM, Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor, a partir de dentro e a ação de ONGs, Pastoral da criança, universidades e instituições religiosas que acompanhavam os chamados “menores infratores em liberdade condicional” conseguiu constituir uma rede fortemente contrária à ideologia correcional. Essa rede, além da denúncia das formas desumanas de tratamento das crianças e adolescentes “de rua”, desenvolveu uma atuação conjunta para a abordagem educativa das crianças. A metodologia gerada na atuação dessa rede foi incorporada às políticas públicas a partir do ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente: a rede integral de proteção à criança e ao adolescente. A teia da rede é formada por todos os órgãos e serviços governamentais e não governamentais que atuam na ampliação e no aperfeiçoamento das políticas públicas, quer se trate de políticas universais de atendimento às necessidades básicas da criança e do adolescente, quer se trate de medidas de proteção especial para aqueles que se encontram em situação de risco pessoal e social. Nessas conexões, interagem atores tão variados quanto os órgãos executores das políticas públicas (nas áreas de educação, saúde, assistência social, alimentação, cultura, esporte etc.), os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e as entidades públicas e privadas de prestação de serviços, as instâncias do poder judiciário, como Ministério Público, as Secretarias de Justiça, os Conselhos Tutelares e os órgãos de defesa da cidadania.

Ultrapassando fronteiras

A Educação Social de Rua (ESR) demonstra, de forma emblemática, as virtudes formadoras dos movimentos sociais. Para as pessoas que atuam ou desejam atuar no território das redes sociais, é importante conhecer essa experiência. Uma forma de aproximação pode ser a leitura do texto de Walter F de Oliveira, Educação Social de Rua: bases políticas e pedagógicas, que se inicia, ressaltando que as práticas da ESR relacionam-se com o desenvolvimento de práticas educativas no âmbito do Sistema Único de Saúde. A análise apresentada sobre as bases históricas da ESR nos ajudam a situar a constituição do movimento nacional de meninos e meninas de rua e a regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente, discutidas no módulo II.

Sugerimos a leitura do texto e a reflexão sobre dois aspectos importantes:

  • Que reflexões sobre o ECA podemos fazer mediante essa contextualização? A posição que se tinha no início se altera mediante essas informações?
  • Atente-se para que aspectos a educação social de rua traz para a teoria pedagógica e para o fazer educativo. Essa é a questão-chave que o texto de Oliveira nos ajuda a responder. Em primeiro lugar, identificamos a reeducação da cultura política da sociedade conquistada na passagem da culpabilização da infância para a defesa de seus direitos.

Do ponto de vista do fazer educativo, Oliveira descreve aquilo que ficou conhecido como “pedagogia da presença”. É muito importante identificar as bases que constituem essa atuação pedagógica, que poderá ser muito útil para quem deseja a atuação em redes sociais. Sobretudo, para quem formadores da educação integral/integrada.

Referência: OLIVEIRA, Walter F. de. Educação social de rua: bases históricas, políticas e pedagógicas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n.1, p.135-158, jan.-mar. 2007.

A ideia de Rede de Proteção tem sido acionada na política de vários municípios. Em Porto Alegre, por exemplo, configurou-se o Projeto Integrado de Atenção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco Social (Rede de Proteção). A proposta é unir as cidades que integram a Associação dos Municípios da Grande Porto Alegre (Granpal), no Rio Grande do Sul, para qualificar e ampliar a rede de serviços e de programas de assistência social na região. Dessa forma, busca fortalecer o atendimento a crianças, a adolescentes e a suas famílias.

Além de atuar na formação integrada, o Programa constituiu um sistema de informações que integrará os serviços e o atendimento nos municípios envolvidos e trabalhou na qualificação e ampliação dos espaços físicos da rede de atendimento em assistência social, com obras em abrigos e centros para programas de assistência social.

A idéia de redes socioeducativas coloca-se na perspectiva de criar uma outra cultura do educar/formar, que tem na escola seu locus catalisador, mas que ultrapassa os muros da escola para explorar e desenvolver os potenciais educativos da comunidade. Essa perspectiva dialoga com os princípios da educação popular de rua e reconhece que o ambiente social é espaço de aprendizagem. Nesse processo, a comunidade no entorno da escola também é convidada a participar do processo educativo e a reconhecer, como espaços educativos, a praça, a rua, o parque, uma biblioteca, um clube, um teatro, um cinema, uma associação de moradores, um pátio, entre múltiplas experiências e possibilidades de convivências nos territórios.

Seguindo trilhas

Como se faz a composição de redes socioeducativas? Por onde começar?

A chave para desencadear esse processo é a realidade do território onde se situa a experiência. Colhemos um exemplo que demonstra essa necessária articulação da escola e seu entorno como primeiro passo para compor uma Rede. Trata-se de uma escola municipal localizada na Regional Noroeste de Belo Horizonte, precisamente na Lagoinha, próxima ao Centro da cidade. Essa região tornou-se área de expansão do Programa BH Cidadania, por abrigar uma população caracterizada como de grande vulnerabilidade social. O BH Cidadania é um programa de inclusão social que articula os serviços de assistência social, saúde, educação e busca garantir maior resolutividade e acessibilidade à população fragilizada. Em 2006, a escola integrou-se à expansão do BH Cidadania e passou a funcionar em tempo integral.

O texto a seguir será um diálogo entre a experiência dessa escola e o conceito de redes socioeducativas.

A proposta de educação implementada nesta escola referia-se a um tempo ampliado, entendido como um movimento e um processo dinâmico de educação. Os processos escolares em tempo integral abriram possibilidades de construção de diferentes redes e de significados dentro e fora da escola, apropriando-se dos patrimônios culturais locais. O espaço público escolar foi repensado e sua lógica temporal incorporou tempos mais amplos e contínuo, rompendo com a lógica do tempo de aprender e tempo de socializar, tempo de escola e tempo do esporte, da cultura e do lazer.

A partir de 2007, todos os alunos passaram a permanecer na escola de 7h às 16h, fazendo quatro refeições diárias e participando de atividades diversificadas como informática, inglês, literatura, artes, música, capoeira, circo além das clássicas disciplinas do currículo.

Na proposta da escola, condições socioeconômicas que caracterizam o território não foram desconsideradas. A instalação de uma rota do tráfico do crack na região teve como repercussão imediata a elevação dos índices de violência e a degradação das condições de vida da população. É um contexto de degradação da condição humana que a escola precisou enfrentar para introduzir o contato possível com a cultura. A escola, juntamente com outras instituições como o Centro Cultural, o Núcleo de Atenção à Família (NAF), o Conselho Tutelar, associações de moradores apresenta-se como equipamento público de proteção da vida e de projeção de futuro.

A constituição da escola de tempo integral, aos poucos, produziu efeitos sobre esse contexto com a garantia de maior tempo de experiência escolar e de vivências culturais, de alimentação às crianças, de encaminhamentos efetuados em conjunto com outros equipamentos em relação à saúde, à proteção e contra as diversas formas de violência sofridas pelas crianças e suas famílias.

No contexto referido, assumiu importância a garantia da presença dos alunos na escola. Não raro havia intervalos nessa frequência devido aos problemas de demarcação do território pelas facções que dominam o tráfico, o que impedia que alunos/as de um determinado espaço o atravessem para chegar à escola. Outras instabilidades da vida cotidiana no território – mudanças bruscas de endereço, ameaças de morte, assassinatos, redefinições de guarda de crianças – foram problemas comuns que comprometeram a frequência à escola. O monitoramento da presença dos/as alunos/as, o encaminhamento de casos para intervenção de outras instituições – NAF, Núcleo de Mediação de Conflitos, Conselhos–, conversas e visitas às famílias das crianças se incorporaram à ação pedagógica. Esse é um dado importante nesse contexto: chegar vivo à escola no dia seguinte.

Superada essa barreira, as crianças chegavam à escola advindas de relações que desumanizam: a recorrência ao uso de drogas direta ou indiretamente, pela família ou pela própria criança; a violência doméstica, do tráfico e, não raro, da polícia; a fome; as condições de precarização e exploração do trabalho, principalmente o feminino e o infantil. É importante assinalar que mesmo as crianças cujas famílias são atendidas por programas de renda mínima não ficam livres do trabalho infantil doméstico, muito recorrente no caso das meninas, que cuidam da casa e dos irmãos menores quando as mães possuem alguma ocupação.

A inserção dos/as alunos/as nas formas escolares sofreu os efeitos desse quadro: a resistência às atividades propostas, a dificuldade de permanência na sala de aula sob vários subterfúgios incluindo a fuga, a agressividade entre as crianças. Essa situação colocou um sério desafio: como estabelecer a ação educativa no limite entre o humano e o desumano?

As ações da escola para ampliar os limites da humanização iniciaram-se pela tentativa de aproximação entre pais, mães ou outros responsáveis e as crianças, numa dinâmica que pudesse recompor a afetividade. Algumas estratégias foram pensadas nesse sentido:

1 Dia da brincadeira na escola em que as mães, pais ou responsáveis foram brincar com as crianças do 1º ciclo, com a participação de um brincante contratado pela escola e outros do Centro Cultural, entidade parceira nesse evento. As crianças confeccionaram o lanche para as famílias (processo desencadeado em outra ação importante da escola, o projeto saúde e atividades cotidianas, que contou com a parceria da Faculdade de Nutrição da UFMG).

2 Dia da sexualidade. As famílias e alunos do 2º ciclo debateram a gravidez na adolescência e participaram do lanche preparado pelos/as alunos/as.

3 Os/as alunos/as apresentaram para as famílias o que aprenderam nas oficinas de dança, capoeira, música, artes e nas aulas de inglês e literatura no dia da reunião das famílias.

4 Dia da pipa. Após a realização de uma oficina de construção de pipas coordenada pelos pais, irmãos, tios dos/as alunos/as, foi realizado um passeio ao Parque Ecológico da Pampulha, no qual todas as mães, pais ou irmãos maiores de 18 anos puderam participar da atividade de soltar pipa.

Outra ação importante foi a organização de visitas domiciliares às famílias dos alunos/as que apresentavam alguma forma de negativa frente à ação escolar – comportamento inadequado, agressividade, adoecimento, recusa ou dificuldade de aprendizagem. As visitas foram organizadas a partir das respostas dos responsáveis à solicitação da escola para receber a coordenação e a professora para uma conversa sobre a criança. A resposta indicando a possibilidade ou não dessa recepção apresentava elementos para compreender as formas de sociabilidade presentes nesse contexto. As recusas, por exemplo, não se endereçavam às pessoas da escola; assinalavam a impossibilidade de diálogo em casa durante o dia e desaconselhavam a entrada nos becos à noite. As visitas respeitaram os dias e horários marcados e sempre se fizeram com a presença da assistente social do NAF, da coordenação pedagógica, e, em alguns casos, com a presença da professora do/a aluno/a.

Essas visitas ofereceram elementos importantes para acessar as formas de sociabilidade do território. Descobriram-se as estratégias de sobrevivência, cuidado com a criança e afetividade possíveis na dinâmica do território. É possível, por exemplo, que a criança permaneça durante o dia na casa de um dos vizinhos e só retorne à sua casa para dormir. Numa das casas, a mãe relatou as dificuldades nos partos que teve e isso configura, de certa forma, a aspereza de sua relação com os filhos e até o descuido com a saúde deles. Entretanto, surpreendentemente, havia um canto de destaque na parede, com fotos dos vários momentos significativos da vida dos filhos – batizados, festas da escola, aniversários e o nome da professora escrito por um deles.

Os rearranjos familiares indicaram a instabilidade que pode causar efeitos na estrutura das crianças – períodos com o pai, a mãe, a madrasta sem o pai, com tias, estabelecidos em acordos ou em brigas. Indicaram também uma figura desconhecida: o parentesco por afinidade, ou seja, a figura que se responsabiliza pela criança não possui vínculo parental, mas, por algum motivo, tem com ela uma relação de afeto e de afinidade. Essa pessoa pode ser vizinho, amigo (a) da família, entre outros. Esses rearranjos podem significar a garantia da sobrevivência e do cuidado, e não o comprometimento da estrutura afetiva.

As visitas domiciliares, além de reveladoras para os docentes, abriram um espaço de fala para a família que pode ter significado a única oportunidade para tratar da relação com as crianças fora do registro ao qual se encontram emaranhadas. A oportunidade de recompor a história para si e para os outros é uma forma de intervenção significativa da escola no território. A partir do reconhecimento do território, a escola ampliou suas possibilidades educativas e prossegue recompondo propostas educativas.

Nesse exemplo de rede socioeducativa, a escola tem o papel de sede e de centro, mas o fluxo de saberes a transborda em busca de valores, conhecimentos, experiências e recursos disponíveis localmente: nas universidades, em instituições de educação não formal, no centro cultural e nos equipamentos de assistência social e proteção à infância.

Não bastasse o desafio de integrar as políticas públicas setoriais em um Plano de Educação Integral, a territorialização propõe, ainda, que cada política pública seja articulada em um dado território. É a partir desses conhecimentos, saberes, potenciais, conflitos, dessas contradições e dificuldades que se expressam no território que deverão ser implementadas as políticas públicas.

Ultrapassando fronteiras

O caso explorado indica-nos como a composição de redes socioeducativas pode emergir da ação da escola, que atua na articulação com as formas de viver no território e com as organizações e instituições nele instaladas. Para aprofundar a reflexão sobre esse aspecto, sugerimos a leitura do texto Intersetorialidade e contextos territoriais, de Lúcia Helena Nilson. Esse texto faz parte do Caderno Educação Integral e Intersetorialidade, publicado pelo Ministério da Educação através da Secretaria de Educação a Distância.

Acesse o Caderno Educação Integral e Intersetorialidade.

Flashes de viagem

Selecionamos um vídeo do Programa Salto para o Futuro, em que se discutem propostas de educação de tempo integral. Nesse episódio, destaca-se a importância dos educadores sociais na articulação entre a escola e o território. Faça o download no Domínio Público.

Assista também ao vídeo em que a temática ‘A Educação integral e a intersetorialidade’, suas potencialidades e desafios, é posta em discussão. Trata-se de uma roda de conversa promovida pelo grupo TEIA da FaE-UFMG:

CURSO DE APERFEIÇOAMENTO / ATUALIZAÇÃO: “EDUCAÇÃO INTEGRAL: ESCOLA E CIDADE”
MÓDULO 5 – Educação integral como arranjo educativo local
UNIDADE 1 - A formação de redes sociais em função dos processos educativos

Autores:

Geniana Guimarães Faria (Doutoranda em Educação – FAE/UFMG)
Juliana Batista (Doutoranda em Educação – FAE/UFMG)
Michely de Lima Ferreira Vargas (Mestre em Educação – FAE/UFMG)
Paulo Henrique de Queiroz Nogueira (FAE/UFMG)
Ricardo Sales (Mestre em Educação Física – EEFFTO/UFMG)
Shirley Aparecida de Miranda (FAE/UFMG)

Referências bibliográficas:

    SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000 p. 96

    SANTOS, Milton. Território e Sociedade: entrevista com Milton Santos. SEABRA, Odete; CARVALHO, Mônica; LEITE, José Corrêa (entrevistadores). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 26

    ARROYO, Miguel G. Pedagogias em Movimento – o que temos a aprender dos Movimentos Sociais? Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp. 28-49, Jan/Jun 2003

    ARROYO, Miguel Gonzáles. O aprendizado do direito à cidade: Belo Horizonte a construção da cultura pública. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 1, p 23-38, jul. 1997.

    Walter F de Oliveira, Educação Social de Rua: bases políticas e pedagógicas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n.1, p.135-158, jan.-mar. 2007.

    NILSON, Lúcia Helena. Intersetorialidade e contextos territoriais. In: Educação Integral e Intersetorialidade. Secretaria de Educação à Distância/ Programa Salto para o Futuro. Ano XIX – Nº 13 – Outubro/2009.

    Manifesto AfroReggae. www.afroreagge.org